Thursday, October 07, 2010

Monte Mor de Antanho - Causos - 11

Suspensórios – a prova do crime

Cidade pacata do interior, a televisão ainda não chegara e os únicos divertimentos eram os passeios pela praça aos finais de semana e, vez ou outra, uma sessão de cinema. Agora, o que fazia a cidade desassossegar, era o anúncio de chegada de um circo. O disque-disque andava mais que notícia ruim. A criançada, então, não largava as saias das mães, ou torrava a paciência dos pais com as famosas perguntas:

-Mãe, "ocê" me leva no circo? Eu quero vê o “paiaço”.

-Pai, o Tião “falô” que tem um montão de bicho. Macaco, leão, girafa e até cachorro que fala.

-Sai pra lá criança, onde já se viu cachorro “falá”?

E a conversa ia por aí afora.

Deixando as crianças de lado, os adultos já nem trocavam bom-dia ou boa-tarde. O que se ouvia era:

-E o circo, será que vem “mermo”?

-Tão “falano” que a estréia é sexta-feira.

-“Disque” tem elefante, gorila e um “casar” de leão que veio da África. Nem sei onde fica essa “tar” de África, “mai disque” é verdade.

-Eu já vi retrato de leão no “arbo” de figurinha do meu “fio”. Quero ir nesse circo pra “vê” o bicho de verdade.

-O “nhô” Zeca Sabino disse que assistiu esse circo lá em Rebouças e que o “tar é bão mermo”. “Vamo esperá pra vê”.

Enfim, o circo estava para chegar, e havia coisa melhor?

Bem, esta história não tem nada a ver com circo, apesar de que o mesmo vai ter uma participação, embora pequena, mas importante, no resultado final. Tudo começou com o Juca, moço bom, honesto, trabalhador e solteiro.

Era lá pelos anos quarenta e o moçoilo chega aos dezoito anos. A vontade de mulher há muito lhe arrebitava as calças. Mulher era raridade, dinheiro mais ainda e o prostíbulo era um conto de fadas. O negócio era se virar com as éguas. Era de graça, não apresentava perigo, a não ser que o dono do animal aparecesse na melhor hora.

Juca não podia ver uma fêmea de quatro pernas para já imaginar um barranco. Botava nomes próprios nas suas preferidas. Diziam que algumas até lhe conheciam.

Pois é, essa era a saída para se livrar daquele desassossego que aperta o peito, sobe e desce pelo espinhaço e deixa a gente numa danação sem dó. Mas, para se arrumar com as bichanas era preciso um companheiro. É muito difícil realizar o evento sem a participação de um amigo, a não ser que o lugar seja muito apropriado e tenha onde amarrar a escolhida, e ainda é importante que a coisa fique de frente ao barranco, porque barranco é fundamental, sem ele nada feito. O que pode resolver, na falta do barranco, é um cupinzeiro, alguns encaixam na altura. Agora, como nem sempre é possível uma estaca para prender a gostosa, o companheiro de Juca era o Landão, que primeiro segurava o cabresto. Depois era o Juca que segurava a corda, afinal quem consegue assistir uma coisa assim sem ficar doidão da vida?

Deixando todas essas dificuldades de lado, Juca sempre dava um jeito para se livrar daqueles arrebites da calça.

Num domingo qualquer Juca amanheceu daquele jeito, numa danação que dava pena. Quando a tarde chegou, toda preguiçosa, o moço, desalentado vai lá pelos lados do rio Capivari. Passava perto da ponte seca quando viu uma burrica nova que ainda não fora sua, e ajeitada. Não deu outra. Estava com sorte, a burra era mansa, aceitou os afagos e lá foram pra debaixo da ponte. E para completar ela era baixinha e uma pedra encaixou direitinho. Juca tirou os suspensórios, passou no pescoço da burra e amarrou a tal no moirão da ponte. Beleza.

Tudo nos conformes,”mandou brasa”. Mas como muita sorte dá para desconfiar, naquela horinha boa, passava por cima da ponte os carros daquele circo, lá do começo da história, e para o azar do Juca foi justamente o carro puxando a jaula do leão que se atreve a cruzar a ponte no momento crucial. O leão, como não podia deixar de ser, sentiu o cheiro de carne fresca, da burrica é claro, e solta um tremendo rugido.

A burrica assustou-se, deu uns pinotes, saiu correndo e levou os suspensórios do moço deixando-o ao sabor das mãos. Dia seguinte o proprietário da burra - não se sabe como descobriu o enredo da coisa - vai ao serviço do Juca devolver os suspensórios. Pra quê? Aí todo mundo perguntava ao noivo quando seria o casamento, afinal ele tinha deflorado a burrica que, segundo seu dono, ainda era virgem.

Tuesday, October 05, 2010

Monte Mor de Antanho - Causos - 10

A PAINEIRA

De indescritível beleza, aquela paineira foi um dos meus grandes amores de infância. Seu tronco era de um enorme diâmetro. Baixo, não atingia três metros de altura quando nasciam os grandiosos galhos serpenteando pelos ares e formando uma enorme copa que cobria largo espaço. Um deles destacava-se pela sua magnitude. Nasceu inclinado para a terra como a agradecer a maternidade para depois, generosamente, dar glórias aos céus. Quando florida, era uma enorme e colorida taça coberta por magníficas e suaves pétalas avermelhadas a oferecer seu doce néctar às infindáveis espécies de insetos enquanto muitas centenas de multicores e irrequietos colibris, carinhosamente, em amorosos beijos, sugavam suas delícias. Era uma enorme orquestra de sons e cores premiando a natureza com o brilho de uma melodiosa e primaveril sinfonia.

Finda a estação das flores o gigante ramalhete transformava-se num conjunto de centenas de pingentes verdejantes, cobrindo toda a copa, produto dos amores da primavera. Carinhosamente, como uma mãe que aninha em seu colo suas crias, a fantástica árvore alimentava seus frutos para que crescessem belos e formosos enquanto, ora a brisa, ora o forte vento cantavam deliciosas canções de ninar.

Quando as primeiras folhas começavam a receber o tom amarelado do outono, ela se cobria de branco como uma noiva apaixonada a espera do seu amado para lhe aquecer com o calor dos flocos de algodão que brotavam de seus frutos.

Adormecia durante o inverno, mesmo assim continuava a dar abrigo a inúmeras aves que ali pousavam ou se preparavam para construir seus ninhos.

Um dia o senhor progresso chegou trazendo seu machado. Findou-se a sinfonia. O mundo ficou mais triste. Chorei.

Monte Mor de Antanho - Causos - 09

DISTRAÇÃO

Foi para Campinas em seu fusca ano 62. Seu costume era viajar de ônibus, mas resolveu estrear o carro semi- novo. Escolheu uma rua de pouco movimento para deixar o carrão, pois em matéria de estacionamento era um desastre. O espaço deveria servir para, pelo menos, mais três fuscas.

Andou pela rua Treze de Maio, visitou várias lojas, olhou as vitrines, comprou um sapato, comeu um lanche, subiu a dita rua até a estação dos ônibus, comprou passagem, embarcou.

Quando aqui chegou, falo de Monte Mor, lembrou-se do carro. Não sabia se ria ou chorava. Foi rapidamente para casa, contou o ocorrido, trocou o sapato que apertava o pé, tirou o casaco, deu uma mijada e voltou ao ponto de ônibus.

A espera e a viagem duraram um século, mas enfim o carro permanecia lá.

Ufa!

Meteu a mão no bolso, cadê a chave? Ficou no casaco que deixou em casa. Puta que o pariu, isso já é demais. Repete a dose.

Conclusão, o que começou às sete, terminou às dezessete.

Monte Mor de Antanho - Causos - 08

DISCUSSÃO

Aconteceu logo no início da antiga rua Francisco Glicério, hoje Siqueira Campos, no sentido de quem vem do cemitério.

Elas não se davam muito bem, mas naquele dia a batalha verbal foi homérica. De um lado Alfonsina, mulher de ombros largos afinando para baixo, bunda caída e pés enormes, número quarenta e dois pra mais que menos. Do outro lado Lulu, nariz fino, rosto chupado, barriga saliente e bobs na cabeça. Mais falada que praga ruim.

A gritaria corria solta enquanto Alfredão, marido de Lulu, assistia de camarote sem dar um pio. De repente Alfonsina despeja com todas as letras o já famoso comportamento de Lulu:

-Você dá pra todo mundo, sua vaca!

Essa foi demais, Alfredão sai de sua trincheira, saca sua espada verbosa e ataca:

Fique sabendo sua enxerida que a xoxota é de Luluzinha e ela dá pra quem quiser. Você não tem nada com isso, sua bunda seca!

Monte Mor de Antanho - Causos - 07

PAIXÃO

Certo domingo, após a missa, Afrânio comprou um exemplar de “O Cruzeiro”, na praça, em frente a igreja onde o Peta espalhava e vendia suas revistas. A cidade ainda não contava com uma banca ou revistaria, e dependia do caixeiro viajante que sempre depois da missa dominical estava de prontidão com sua coleção dos últimos números das mais populares revistas que circulavam naqueles anos dos meados do século passado. “O Cruzeiro, “Manchete”, “Grande Hotel”, “Sedução”, entre outras.

Aquele exemplar, comprado pelo Afrânio, trazia como destaque o concurso para miss São Paulo 1952, acontecido na semana que findava. Na capa a linda foto da escolhida. Bela mulher.

Não deu outra, Afrânio apaixonou-se perdidamente pelo mulherão.

Todos os dias abria a revista na página onde aparecia aquele monumento que lhe enchia os olhos e lhe arrebitava as calças. Que mulherão! Isso sim é que é mulher, nunca tinha visto um tesouro como aquele.

Dias depois resolveu que tinha que comer aquela gostosa. Em sua cabeça não passava mais nada além daquele louco desejo. Sonhava com a deusa e até calo já surgia na mão. Comê-la seria o único caminho para se livrar daquele tormento. Não deu outra, comeu mesmo, e com manteiga. Lá se foi a folha da revista.

Monte Mor de Antanho - Causos - 06

NICOLAU

O turco tinha uma loja situada à rua Francisco Glicério. Lojas de interior lá pelos princípios do século XX vendiam de tudo. Desde tecidos, roupas feitas, brinquedos, artigos de agro-pecuária, e até materiais para construção

Certo dia uma senhora chega à loja do Nicolau e pede três metros de um determinado tecido. A peça sobre o balcão o turco diz:

-Senóra não quer leva toda peça?

-Não seu Nicolau, meu dinheiro não dá.

-Não faz mal bode baga com bunda.

Nhana sai batendo o pé.

Uma hora depois o marido entra na loja soltando fogo pelas ventas.

-Vim tirar satisfação. Que negócio é esse de pagar peça de roupa com a bunda, seu turco safado.

-Não fala isso bra sua muler, Nicolau diz se não tem dinero bode paga segunda.

Monte Mor de Antanho - Causos - 05

ZÉ VITROLA

Faz aproximadamente quarenta anos que conheci Zé Vitrola, caboclo contador de histórias, roncador de papo e, apesar de franzino, todo metido a valente e corajoso. Pescador afamado, dizia não ter medo de nada e gostava de se aventurar pelo rio, sempre depois do por do Sol, tendo por companhia somente um vira-lata que adotou, depois de encontrá-lo quase a morrer de fome e com sarna numa das patas. Tratado, até que ficou bonitinho.

Não se importava se fosse noite clara de lua cheia ou escura de lua nova, e nem se preocupava com as muitas histórias de fantasmas que corriam soltas entre os moradores da pequena cidade de Monte Mor. Asseveravam que determinado trecho do rio Capivari era mal assombrado, porque ali morrera , numa sexta-feira treze, um conhecido pescador da cidade, o Nestor, mineiro de nascença, mas que desde quando usava calças curtas já andava pela cidade. Depois que a mãe morreu, morava sozinho numa choça de tabique rio abaixo, criava meia dúzia de patos, algumas galinhas e tinha alguns pés de mandioca rodeando a casa. Seu sustento tirava, era mesmo, dos muitos peixes que caiam em suas armadilhas. Morreu afogado e enroscado numa de suas redes. Diziam que fora vítima do boitatá que se vingou por causa do fogo que ele ateou numa roda de mato onde construiu sua choupana. Boitatá, ou o fogo que anda, é o guarda da floresta e suas vítimas são aqueles que queimam o mato. “Tonho da Zirda” já havia encontrado a cobra de fogo, e por muito pouco não acabou sendo sua vítima. “Mané Manco”, então, viu a alma do Nestor remando rio acima e jogando a rede. Jurava de “pé junto e mão posta”. “João Gordo”, para sacramentar o fato, também dizia ter visto a tal assombração, e afirmava que fora durante o dia, uns trezentos metros abaixo da ponte. Relatava que a coisa era tão feia que a partir de então passava longe do rio. Pescava traíra, mas só na lagoa da fazenda do patrão e ainda com o Sol rachando a cuca, à noite, nem acompanhado de São Cipriano. Poucos se atreviam à pesca noturna, e quando o faziam, evitavam aquele trecho do rio. Zé Vitrola, porém, jamais se intimidou com tais histórias. Roncava papo dizendo:

-Sombração? Num credito de jeito nenhum, esse negócio é coisa de marica. Até quero encontrá a coisa feia, garanto que faço a tar corrê, e se topá a cobra de fogo, apago o fogo dela.

Seu bote era de madeira, não usava remo, mas uma vara de bambu de uns três metros e qualquer coisa, chamado varejão. Levava pelo menos uns três caniços de pesca, uma caixa de madeira que ele mesmo fizera, onde guardava os respectivos apetrechos, linha, anzol, chumbada, um alicate para cortar ferrão de mandi e mais uma lanterna de carbureto. Carregava, também, uma lazarina, espingardinha que foi de seu bisavô e um enxadão de cabo curto que usava para arrancar minhocas num brejo que ficava margeando o caminho do rio, lugar onde vez ou outra também costumava caçar algum preá ou algumas rãs para a mistura do almoço.

A embarcação tinha um banquinho em cada extremidade. O piloto, no caso o Zé, ia sempre na parte de trás, para poder manobrar a canoa, já no banquinho da frente ia o Cotó, o vira-lata adotado, sem rabo de nascença, e que não era de todo preto por causa da pinta branca na pata dianteira do lado direito, resultado da sarna. Embaixo do banco ficavam alguns sacos de estopa que serviam de cama para o cãozinho, que se entediava quando a pescaria varava a noite. Mas a qualquer ruído estranho sempre saltava latindo.

Certa tarde, já avançada na hora, e como era de costume, depois do trabalho, Vitrola arrumou suas tralhas de pesca e lá foi para mais uma de suas rotineiras aventuras. Cotó corria na frente. Era um sábado, mês de outubro, e o Sol já ensaiava sua despedida. Algumas cigarras ainda estrilavam aproveitando os últimos raios de luz que, como espadas luminosas, rasgavam o espaço para ferir o verde que margeava o rio. Anunciando a noite que chegava, ora aqui, ora ali, uma ou outra rã ensaiava a sinfonia noturna. As águas tranquilas, suavemente deslizavam rio abaixo e carinhosamente acariciavam as folhas do velho sangue d’água que pendia sobre seu leito.

Os pássaros buscavam seus ninhos, bandos de garças cruzavam o céu formando flechas em direção ao seu retiro noturno. Ainda houve tempo para que um bando de tuins fazendo uma sonora algazarra, pousasse num frondoso ingazeiro, para segundos depois desaparecerem num agitado vôo procurando seu conchegativo abrigo . Aos poucos a estrela maior desaparecia no horizonte, dando lugar à rainha da noite, toda cheia, a espalhar sua chuva de prata, enquanto era cortejada pelas infinitas estrelas.

As rãs agora já apresentavam as primeiras peças do concerto noctívago. Ao longe se ouvia o canto cadenciado da saracura, e vez ou outra o piado de alguma coruja.

Zé tentou fisgar algum peixe logo ali, ao lado de seu bote. Conseguiu alguns mandis, um bagre sapo e, por acaso, já que isso raramente acontecia durante a escuridão, fisgou uma piranha de bom tamanho. Depois de perder um anzol que enroscara em algum galho no fundo do rio, embarcou no velho bote de maçaranduba.

Naquela época existia somente uma ponte sobre o rio Capivari que permitia a chegada ao único cemitério da cidade. Por isso mesmo é que ninguém queria saber de morar pra lá da ponte. Servia, também, como ponto de referência para se considerar o que seria rio acima e rio abaixo.

Naquela noite o bravateiro resolveu navegar rio abaixo em busca dos pontos onde costumava tirar alguma coisa da água. Uma chuva caída na noite anterior deixara as águas barrentas o que é bom para a pesca dos bagres e dos mandis durante o dia, porque à noite é sempre mais favorável quando a água está limpa. Mas, o blasonador, apaixonado que era por uma boa pescaria, conhecia por demais as maneiras de cutucar a boca dos bichos d’água e conhecia muito bem os poços mais profundos, geralmente nas curvas do rio, onde se aninhavam os cardumes.

O luar intenso formava com a ramagem das árvores, estranhas figuras que projetadas sobre o rio, ganhavam vida ao balanço das águas, e desfilavam, ora num coro de anjos ora numa legião de demônios, mas o nosso pescador nem se dava conta daquilo, fazia suas pescarias com freqüência e achava tudo muito natural e belo.

Em uma pequena curva, encostou o bote e amarrou-o em um tronco carcomido que aflorava naquele ponto, desenrolou a linha, deu, como de costume, para dar sorte, um beijo no anzol, espetou um pedaço de minhoca pula-pula e mandou a pesada chumbada para o fundo do rio, porque bagre só se pesca com a chumbada ancorada no fundo. Alguns minutos depois fisgou um mandi. Muito pequeno, só servia para espetar as mãos com seu afiado ferrão. Por isso mesmo foi devolvido ao rio. Depois de mais algumas tentativas, visto que o lugar não parecia propício, soltou o barco que deslizou na calma correnteza.

Cotó sempre alerta, na ponta do bote, observava as margens e vez ou outra latia ao avistar um tatu ou uma lontra que arranhava o solo do barranco do rio. Tudo corria como de costume, não fosse o canto bruxuleante do urutau naquela hora. O lamento da ave sempre acontece no entardecer, mas naquela hora, noite já avançada, não deixou o Zé muito à vontade. Aquele canto fantasmagórico parecia o lamento de uma mulher, “foiiiiiii, foi, foi, foi”. Estava acostumado com aquela voz queixosa e plangente, mas numa hora dessas? Mesmo para um bravo e audacioso pescador o fato era de arrepiar. Empunhou a espingarda e continuou a navegar. As sombras das árvores projetadas na água já não eram tão simpáticas. Cotó se aninhou em sua cama de sacos de estopa, parecendo temer alguma coisa. Mas o silêncio logo voltou. Somente o ciciar de uma leve brisa tocando as ramagens fazia coro com as singelas notas da melodia das águas

A vegetação ribeirinha era muito rica. Árvores de vários portes eram abraçadas pelo emaranhado dos cipós e cortejadas pelas moitas de várias espécies. Uma delas, conhecida como agarra-agarra ou unha de gato, costuma crescer nos barrancos dos rios e se debruça sobre o leito, muitas vezes trazendo problemas para a navegação, já que seus espinhos são muito agressivos ao toque das mãos.

Nosso personagem, exímio conhecedor daquele rio sabia como contornar as dificuldades com muita destreza. Assim sendo continuava sua aventura.

O canto do urutau naquela hora, entretanto, tirou-lhe a tranqüilidade, a ponto de fazer seu coração disparar quando um curiango levanta vôo de uma das margens, quase lhe toca a cabeça e pousa no outro lado rio.

Mesmo com a horripilação que corria pelo espinhaço, ancorou o bote numa curva já bem conhecida onde fisgou dois bons bagres, que juntos deveriam pesar quase um quilo. Preparou a isca e lançou o anzol buscando o terceiro peixe quando o silêncio da noite foi ferido por um alegre, mas quase imperceptível som de uma misteriosa música que brotava em algum ponto rio abaixo. Mais uma vez o coração acelerou. Cotó saiu de seu recolhimento e tomou posição no banquinho do bote. Zé matutou, matutou, sentiu vontade de voltar ao porto seguro, mas a curiosidade foi mais forte. Recolheu o anzol e continuou a navegar ao sabor do deslize das águas.

À medida que o barco descia a música se tornava mais nítida e o volume ia aumentando. Logo deu para perceber que um sanfoneiro rasgava o fole.

Pensou:

- Deus me acuda, o que será uma coisa dessa? Cruizcredo Ave Maria, isso é coisa do cusaruim.

As pernas amoleceram, deu um suadouro danado e até uma reviravolta no “bucho”.

Respirou fundo, e falou para o Cotó:

- Certeza que num é a sombração do Nestor, pois além de pescá, num tocava nem porco marrado pô pé! Quanto mais sanfona! O boitatá também num é. Que eu sei, num tem nem mão pa tocá sanfona. Deve de sê uma arma penada de argum sanfonero.

Pensabundo continuou a descer o rio enquanto a música ia se aproximando. Assim foi até chegar num ponto onde o rio fazia uma curva bem fechada e se enfiava por debaixo de um enorme agarra-agarra, que cobria pelo menos a metade do leito e cujas ramagens tocavam a água. A música nascia no meio do moitão do espinheiro, mas a escuridão e o emaranhado da vegetação impediam qualquer acesso.

Embora estivesse numa tremedeira só, e o coração perdendo a conta de tanto bater, resolveu que não voltaria sem ver essa assombração que devia ser nova naquelas bandas, pois dela ninguém falava e com certeza não a conheciam. Amarrou o bote numa forte raiz de uma árvore que crescia na margem oposta e derramou a luz do carbureto sobre a moita de espinho. Fuçou daqui, fuçou dali até que viu a coisa.

O resto deixo por conta dele:

-Num há de vê que lá debaxo do espinhero do garra-garra a água virava que nem remoinho! E bem no meio dele rodeava um disco de mus’ca, daqueles do tempo de dante e um estrepe da unha de gato, no lugá da guia, fazia roncá o fole do sanfonero! Inté parecia a vitrola de tio Mané. Pá falá verdade, se Maria mia muiê, tivesse lá, inté dava pa trocá uns passo de dança co’ela. Taí Cotó pá num dexá eu minti sozinho. O tarzinho viu tudo. Num é mermo Cotó?

Cotó abanava o toco do rabo, e para confirmar dava dois breves latidos.

Monte Mor de Antanho - Causos - 04

NOITE SEM LUA.

Pinturas rupestres sugerem que a relação sexual entre os humanos e os animais, remontam os tempos pré-históricos. Uma delas, encontrada em Val Camônica, na Itália datada de cerca de 3000 a.C. mostra um homem copulando com um asno. Na Sibéria aparecem figuras de homens relacionando sexualmente com alces. Na Antiguidade também era comum o relacionamento de humanos com bichos. Até na mitologia grega aparecem relatos característicos É muito conhecida a história do Minotauro, quando Pasífae, esposa do rei Minos, engravidou-se de um touro, embora caracterizado como um deus, e, em conseqüência deu à luz um ser com corpo de homem e cabeça de touro. Na Idade Média, com o predomínio da ideologia cristã, no mundo ocidental, tudo que era relacionado ao sexo, exceto a procriação, passou a ser pecado. Até pensar no assunto era proibido. Quem fosse descoberto nessa prática, com animais, era preso e julgado. Uma vez comprovada a culpa, poderia ser morto. Até os animais eram julgados, e muitas vezes, considerados coniventes, também eram sacrificados.

Evidentemente que a aberração continua existindo, mas aqui vamos considerar um fato que devido à sua originalidade tornou-se jocoso. Os animais que nos perdoem, pois na verdade sempre são as vítimas das barbáries humanas.

Certa vez um garoto apelidado de Pinga, juntamente com mais dois amigos, em uma noite sem luar, portanto totalmente escura, resolveram aproveitar-se de uma mula que vivia num pasto próximo ao córrego Água Choca. Uma corda no pescoço do animal, um cupinzeiro e estava tudo pronto. Pinga foi o primeiro, os outros segurando a corda. O bicho não gostou do Pinga, meteu-lhe um violento coice, que arrebentou o topo do cupinzeiro jogando o rapaz de costas no chão. E ainda mais, deu um salto, livrou-se das cordas e saiu em disparada. Foi a escuridão, pegaram o burro por engano.

Monte Mor de Antanho - Causos - 03

Insaciável!

Joaquim, certo dia, resolveu que iria comer todas. Listou e enumerou como seria o evento. Primeiro as gordas, depois as mais altas, em seguida as de pernas grossas, as de pernas longas, as mais barulhentas, as mais tranqüilas e finalmente as mais magras. Deixou estas por último porque não era muito chegado a gordura. Realizou seu desejo, acabou com o galinheiro.

Monte Mor de Antanho - Causos - 02

O SAPO

Ganhou um sapo no jogo de argolas do parque de diversões. De louça. Última categoria. Para falar a verdade, era preciso um bom exame para se constatar ser realmente um sapo. Mas era.

O menino sai sem saber o que fazer como o horroroso troféu. Topou com sua prima segurando uma bola.

-Que sapo bonitinho! Onde você ganhou? Perguntou a prima.

-No jogo de argolas.

-Ganhei essa bola na pesca. Saco; não gosto de bolas, disse a menina.

-Também não gosto de sapos. Vamos trocar?

Negócio feito, a menina com o sapo e o garoto, feliz, com a bola.

A bola pouco durou. Depois do primeiro furo, um remendo, depois do segundo, lixo.

E o sapo? Quietinho permanecia ao lado da cama da priminha, que dele cuidava carinhosamente. Ritual diário: alisa aqui, alisa ali, acaricia cá, acaricia acolá, um beijo, e o bicho de louça volta ao seu lugarzinho predileto.

Certo dia, finalizando o ritual, a já mocinha, acertou o beijo no lugar que devia e o batráquio horroroso tornou-se um príncipe. Casou-se com ele e agora a rabuda tá podre de rica.

O menino? Faz quarenta anos que, de parque em parque tenta ganhar uma sapa no jogo de argolas.

Monte Mor de Antanho - Causos - 01

A SERENATA

A serenata ou seresta ou ainda sereno, é, normalmente, um concerto musical, vocal ou instrumental, feito à noite, ao ar livre e quase sempre dirigido à uma mulher. Pode ainda representar composições musicais com um ou vários andamentos executados tanto ao ar livre como em ambientes fechados. Embora a denominação seresta seja relativamente recente, a origem da serenata remonta o final da Idade Média. No Brasil encontramos referências à esse estilo musical já no início do século XVIII. Ao passar por Salvador, em 1717, o viajante e comerciante francês Le Gentil de la Barbinais em seu livro “Nouveau Voyage Autour Du Monde” assim observava: “à noite só se ouviam os tristes acordes das violas, debaixo dos balcões de suas amadas”.

Embora possa ser entendida de uma forma diferente, a que predomina é aquela em que o cantor se coloca ante a janela de sua pretendida e, madrugada adentro, vai entoando melodias amorosas para demonstrar sua paixão. Este é um costume herdado da Península Ibérica,

trazido pelos portugueses, nossos colonizadores.

Vamos ao nosso caso.

A donzela morava na rua do Pito, depois da Água Choca. Bela mulata, Marina era de tirar o chapéu. Provocava muita euforia manual no Zé do Noca. Um dia, apaixonado pela morenaça, resolveu lhe fazer uma serenata. Craniou, craniou, encontrou uma bela melodia, cuja letra era sua declaração de amor. Sondou e descobriu que o marido saía todo sábado à noite. Ensaiou muito, escolheu o sábado e lá foi todo engomado, brilhantina Glostora nos cabelos, sapato engraxado.

Sangue fervendo nas veias, violão nos braços, primeiro acorde e lá vai ele:

- “Onde estás coração?

- Tá na puta que o pariu, respondeu o marido, que saindo como louco

tomou o violão e o arrebentou na cabeça do Zé.

Caboclo azarado, aquele foi um dos poucos sábados que o marido não saiu.

A partir daí todos perguntavam: e aí Zé? Onde tá o coração?

-Tá na p.q.p.