ZÉ VITROLA
Faz aproximadamente quarenta anos que conheci Zé Vitrola, caboclo contador de histórias, roncador de papo e, apesar de franzino, todo metido a valente e corajoso. Pescador afamado, dizia não ter medo de nada e gostava de se aventurar pelo rio, sempre depois do por do Sol, tendo por companhia somente um vira-lata que adotou, depois de encontrá-lo quase a morrer de fome e com sarna numa das patas. Tratado, até que ficou bonitinho.
Não se importava se fosse noite clara de lua cheia ou escura de lua nova, e nem se preocupava com as muitas histórias de fantasmas que corriam soltas entre os moradores da pequena cidade de Monte Mor. Asseveravam que determinado trecho do rio Capivari era mal assombrado, porque ali morrera , numa sexta-feira treze, um conhecido pescador da cidade, o Nestor, mineiro de nascença, mas que desde quando usava calças curtas já andava pela cidade. Depois que a mãe morreu, morava sozinho numa choça de tabique rio abaixo, criava meia dúzia de patos, algumas galinhas e tinha alguns pés de mandioca rodeando a casa. Seu sustento tirava, era mesmo, dos muitos peixes que caiam em suas armadilhas. Morreu afogado e enroscado numa de suas redes. Diziam que fora vítima do boitatá que se vingou por causa do fogo que ele ateou numa roda de mato onde construiu sua choupana. Boitatá, ou o fogo que anda, é o guarda da floresta e suas vítimas são aqueles que queimam o mato. “Tonho da Zirda” já havia encontrado a cobra de fogo, e por muito pouco não acabou sendo sua vítima. “Mané Manco”, então, viu a alma do Nestor remando rio acima e jogando a rede. Jurava de “pé junto e mão posta”. “João Gordo”, para sacramentar o fato, também dizia ter visto a tal assombração, e afirmava que fora durante o dia, uns trezentos metros abaixo da ponte. Relatava que a coisa era tão feia que a partir de então passava longe do rio. Pescava traíra, mas só na lagoa da fazenda do patrão e ainda com o Sol rachando a cuca, à noite, nem acompanhado de São Cipriano. Poucos se atreviam à pesca noturna, e quando o faziam, evitavam aquele trecho do rio. Zé Vitrola, porém, jamais se intimidou com tais histórias. Roncava papo dizendo:
-Sombração? Num credito de jeito nenhum, esse negócio é coisa de marica. Até quero encontrá a coisa feia, garanto que faço a tar corrê, e se topá a cobra de fogo, apago o fogo dela.
Seu bote era de madeira, não usava remo, mas uma vara de bambu de uns três metros e qualquer coisa, chamado varejão. Levava pelo menos uns três caniços de pesca, uma caixa de madeira que ele mesmo fizera, onde guardava os respectivos apetrechos, linha, anzol, chumbada, um alicate para cortar ferrão de mandi e mais uma lanterna de carbureto. Carregava, também, uma lazarina, espingardinha que foi de seu bisavô e um enxadão de cabo curto que usava para arrancar minhocas num brejo que ficava margeando o caminho do rio, lugar onde vez ou outra também costumava caçar algum preá ou algumas rãs para a mistura do almoço.
A embarcação tinha um banquinho em cada extremidade. O piloto, no caso o Zé, ia sempre na parte de trás, para poder manobrar a canoa, já no banquinho da frente ia o Cotó, o vira-lata adotado, sem rabo de nascença, e que não era de todo preto por causa da pinta branca na pata dianteira do lado direito, resultado da sarna. Embaixo do banco ficavam alguns sacos de estopa que serviam de cama para o cãozinho, que se entediava quando a pescaria varava a noite. Mas a qualquer ruído estranho sempre saltava latindo.
Certa tarde, já avançada na hora, e como era de costume, depois do trabalho, Vitrola arrumou suas tralhas de pesca e lá foi para mais uma de suas rotineiras aventuras. Cotó corria na frente. Era um sábado, mês de outubro, e o Sol já ensaiava sua despedida. Algumas cigarras ainda estrilavam aproveitando os últimos raios de luz que, como espadas luminosas, rasgavam o espaço para ferir o verde que margeava o rio. Anunciando a noite que chegava, ora aqui, ora ali, uma ou outra rã ensaiava a sinfonia noturna. As águas tranquilas, suavemente deslizavam rio abaixo e carinhosamente acariciavam as folhas do velho sangue d’água que pendia sobre seu leito.
Os pássaros buscavam seus ninhos, bandos de garças cruzavam o céu formando flechas em direção ao seu retiro noturno. Ainda houve tempo para que um bando de tuins fazendo uma sonora algazarra, pousasse num frondoso ingazeiro, para segundos depois desaparecerem num agitado vôo procurando seu conchegativo abrigo . Aos poucos a estrela maior desaparecia no horizonte, dando lugar à rainha da noite, toda cheia, a espalhar sua chuva de prata, enquanto era cortejada pelas infinitas estrelas.
As rãs agora já apresentavam as primeiras peças do concerto noctívago. Ao longe se ouvia o canto cadenciado da saracura, e vez ou outra o piado de alguma coruja.
Zé tentou fisgar algum peixe logo ali, ao lado de seu bote. Conseguiu alguns mandis, um bagre sapo e, por acaso, já que isso raramente acontecia durante a escuridão, fisgou uma piranha de bom tamanho. Depois de perder um anzol que enroscara em algum galho no fundo do rio, embarcou no velho bote de maçaranduba.
Naquela época existia somente uma ponte sobre o rio Capivari que permitia a chegada ao único cemitério da cidade. Por isso mesmo é que ninguém queria saber de morar pra lá da ponte. Servia, também, como ponto de referência para se considerar o que seria rio acima e rio abaixo.
Naquela noite o bravateiro resolveu navegar rio abaixo em busca dos pontos onde costumava tirar alguma coisa da água. Uma chuva caída na noite anterior deixara as águas barrentas o que é bom para a pesca dos bagres e dos mandis durante o dia, porque à noite é sempre mais favorável quando a água está limpa. Mas, o blasonador, apaixonado que era por uma boa pescaria, conhecia por demais as maneiras de cutucar a boca dos bichos d’água e conhecia muito bem os poços mais profundos, geralmente nas curvas do rio, onde se aninhavam os cardumes.
O luar intenso formava com a ramagem das árvores, estranhas figuras que projetadas sobre o rio, ganhavam vida ao balanço das águas, e desfilavam, ora num coro de anjos ora numa legião de demônios, mas o nosso pescador nem se dava conta daquilo, fazia suas pescarias com freqüência e achava tudo muito natural e belo.
Em uma pequena curva, encostou o bote e amarrou-o em um tronco carcomido que aflorava naquele ponto, desenrolou a linha, deu, como de costume, para dar sorte, um beijo no anzol, espetou um pedaço de minhoca pula-pula e mandou a pesada chumbada para o fundo do rio, porque bagre só se pesca com a chumbada ancorada no fundo. Alguns minutos depois fisgou um mandi. Muito pequeno, só servia para espetar as mãos com seu afiado ferrão. Por isso mesmo foi devolvido ao rio. Depois de mais algumas tentativas, visto que o lugar não parecia propício, soltou o barco que deslizou na calma correnteza.
Cotó sempre alerta, na ponta do bote, observava as margens e vez ou outra latia ao avistar um tatu ou uma lontra que arranhava o solo do barranco do rio. Tudo corria como de costume, não fosse o canto bruxuleante do urutau naquela hora. O lamento da ave sempre acontece no entardecer, mas naquela hora, noite já avançada, não deixou o Zé muito à vontade. Aquele canto fantasmagórico parecia o lamento de uma mulher, “foiiiiiii, foi, foi, foi”. Estava acostumado com aquela voz queixosa e plangente, mas numa hora dessas? Mesmo para um bravo e audacioso pescador o fato era de arrepiar. Empunhou a espingarda e continuou a navegar. As sombras das árvores projetadas na água já não eram tão simpáticas. Cotó se aninhou em sua cama de sacos de estopa, parecendo temer alguma coisa. Mas o silêncio logo voltou. Somente o ciciar de uma leve brisa tocando as ramagens fazia coro com as singelas notas da melodia das águas
A vegetação ribeirinha era muito rica. Árvores de vários portes eram abraçadas pelo emaranhado dos cipós e cortejadas pelas moitas de várias espécies. Uma delas, conhecida como agarra-agarra ou unha de gato, costuma crescer nos barrancos dos rios e se debruça sobre o leito, muitas vezes trazendo problemas para a navegação, já que seus espinhos são muito agressivos ao toque das mãos.
Nosso personagem, exímio conhecedor daquele rio sabia como contornar as dificuldades com muita destreza. Assim sendo continuava sua aventura.
O canto do urutau naquela hora, entretanto, tirou-lhe a tranqüilidade, a ponto de fazer seu coração disparar quando um curiango levanta vôo de uma das margens, quase lhe toca a cabeça e pousa no outro lado rio.
Mesmo com a horripilação que corria pelo espinhaço, ancorou o bote numa curva já bem conhecida onde fisgou dois bons bagres, que juntos deveriam pesar quase um quilo. Preparou a isca e lançou o anzol buscando o terceiro peixe quando o silêncio da noite foi ferido por um alegre, mas quase imperceptível som de uma misteriosa música que brotava em algum ponto rio abaixo. Mais uma vez o coração acelerou. Cotó saiu de seu recolhimento e tomou posição no banquinho do bote. Zé matutou, matutou, sentiu vontade de voltar ao porto seguro, mas a curiosidade foi mais forte. Recolheu o anzol e continuou a navegar ao sabor do deslize das águas.
À medida que o barco descia a música se tornava mais nítida e o volume ia aumentando. Logo deu para perceber que um sanfoneiro rasgava o fole.
Pensou:
- Deus me acuda, o que será uma coisa dessa? Cruizcredo Ave Maria, isso é coisa do cusaruim.
As pernas amoleceram, deu um suadouro danado e até uma reviravolta no “bucho”.
Respirou fundo, e falou para o Cotó:
- Certeza que num é a sombração do Nestor, pois além de pescá, num tocava nem porco marrado pô pé! Quanto mais sanfona! O boitatá também num é. Que eu sei, num tem nem mão pa tocá sanfona. Deve de sê uma arma penada de argum sanfonero.
Pensabundo continuou a descer o rio enquanto a música ia se aproximando. Assim foi até chegar num ponto onde o rio fazia uma curva bem fechada e se enfiava por debaixo de um enorme agarra-agarra, que cobria pelo menos a metade do leito e cujas ramagens tocavam a água. A música nascia no meio do moitão do espinheiro, mas a escuridão e o emaranhado da vegetação impediam qualquer acesso.
Embora estivesse numa tremedeira só, e o coração perdendo a conta de tanto bater, resolveu que não voltaria sem ver essa assombração que devia ser nova naquelas bandas, pois dela ninguém falava e com certeza não a conheciam. Amarrou o bote numa forte raiz de uma árvore que crescia na margem oposta e derramou a luz do carbureto sobre a moita de espinho. Fuçou daqui, fuçou dali até que viu a coisa.
O resto deixo por conta dele:
-Num há de vê que lá debaxo do espinhero do garra-garra a água virava que nem remoinho! E bem no meio dele rodeava um disco de mus’ca, daqueles do tempo de dante e um estrepe da unha de gato, no lugá da guia, fazia roncá o fole do sanfonero! Inté parecia a vitrola de tio Mané. Pá falá verdade, se Maria mia muiê, tivesse lá, inté dava pa trocá uns passo de dança co’ela. Taí Cotó pá num dexá eu minti sozinho. O tarzinho viu tudo. Num é mermo Cotó?
Cotó abanava o toco do rabo, e para confirmar dava dois breves latidos.