Sunday, December 05, 2010

Monte Mor de Antanho - Causos 18

Caridade

Batista nunca foi de fazer caridade. Tinha uma cara de poucos amigos, não enjeitava uma briga e usava uma corrente para se safar delas. Era, porém, pessoa de posse, comerciante respeitado, honesto, bom pai de família e segundo diziam, gostava de um carteado. Afinal todo mundo tem defeitos e entre os de Batista esse era o mais “cabeludo”*.

Falava pouco, estava quase sempre só, não freqüentava rodas de amigos, mas dia sim dia não, visitava a barbearia do Juca, na praça central da cidade, para fazer a barba, aparar o bigode e de quebra cortar os fios dos pelos que teimavam em sair do nariz e outros que afloravam dos buracos dos ouvidos. Os cabelos, cortava a cada vinte dias, sempre segundo o estilo militar. Costumava andar bem vestido, sempre de terno de linho no verão e casimira no inverno. Na cabeça um chapéu de feltro, cor cinza claro, e nos pés sapatos marrons, bicos finos, de cromo alemão da marca Scatamáquia, a mais desejada da época, e muito bem lustrados.

Numa dessas visitas ao Juca, a barbearia ficou lotada depois que Batista sentou-se na quarta e última cadeira vazia. Cumprimentou os presentes, acomodou-se e permaneceu taciturno*. Vez ou outra, porém, respondia a uma pergunta para em seguida abraçar o silêncio.

Isso foi até o momento em que, contrariando radicalmente seu comportamento habitual, disparou a contar uma história:

- Hoje o dia foi meio complicado.

Silêncio.

- Vocês sabem, sou viúvo, moro sozinho e a solidão às vezes me deixa meio aturdido, meio abichornado*. Não tenho dormido muito bem, acordo de madrugada, levanto, dou uma mijada no meu urinol* de porcelana importada e filetada a ouro – urinol pra mim tem que coisa boa, nunca vou mijar numa porcaria de ágate* - deito de novo, mas quase sempre perco o sono. Essa madrugada acordei quatro e meia e não dormi mais. Levantei, fiz café, tomei um gole, quando chegou o Mário padeiro. Comi duas fatias do pão com mais um xícara de café e liguei o rádio para ouvir o programa do César de Alencar. Estava tocando uma música com a Emilinha Borba. Aquilo que é mulher, não essas coisas que a gente vê por aqui. Arrasto um trem por uma gostosura daquela.

Nicola interrompeu dizendo:

- Uma cantora daquela não é pra nosso bico Batista! Ela deve ter tantos homens quanto quiser e todos cheios da bufunfa*!

- Sei disso, mas que sinto tesão por ela não posso negar, o que fazer? Ainda mais que estou viúvo e carente!

Feita a observação Batista continua.

- Pois é, como dizia, estava ouvindo o programa do César de Alencar quando bateram à minha porta. Ao abrir, deparei com uma linda ragazza*, com uns farrapos cobrindo aquele corpinho, tipo Emilinha, que não devia ter mais que trinta e cinco anos, e que foi logo dizendo:

- Bom dia senhor. Será que o cavalheiro poderia me ajudar? Estou passando por um triste momento.

- O que lhe aconteceu? – Perguntei.

- Se o senhor permitir passo a contar minha triste história.

- Pode contar, sou todo ouvido.

- Já fui muito rica. Meu pai me deixou grande fortuna, uma fazenda de dois mil alqueires no sul de Goiás. Tinha mais de mil cabeças de gado, grande plantação de milho e feijão e uma linda e confortável casa. Vivia muito bem e feliz, rodeada por muitos empregados que cuidavam das tarefas da fazenda. Lá tínhamos até uma escola para os filhos dos colonos.

- E depois?

- Pois é, certo dia conheci um rapaz da cidade, muito bonito, muito bem vestido e perfumado e que se dizia advogado. Depois de uma breve conversa marcamos um encontro para a semana seguinte. Desse segundo encontro nasceu um namoro que acabou em casamento. O primeiro ano foi maravilhoso, mas depois começaram os problemas que me levaram a essa situação em que me encontro agora. Na verdade meu marido era um espertalhão, mulherengo, jogador e viciado em uma cachaça. Em pouco tempo, antes mesmo que eu tomasse conhecimento o desgraçado me deu um golpe, vendeu tudo o que tínhamos e deu no pé. Hoje não tenho nem o que comer, vivo da caridade das pessoas de sensibilidade. Nem uma casa decente para morar, vivo me escondendo em qualquer buraco que encontro pelo caminho.

- Não deixei que ela continuasse sua história. Fiquei tão emocionado e com um nó na garganta. Eu, homem que nunca chorou, confesso, quase o fiz. Sem mais delongas convidei-a para entrar.

- O senhor vai me ajudar?

- Evidentemente. Isso não pode ficar assim, onde já se viu uma moça como você vivendo dessa maneira, com essa carência toda?

Nessa altura, todos os presentes, emudecidos e assustados com essa atitude incomum de Batista, nem notaram a presença do Nestor parado na porta, coçando o saco sem entender o que estava acontecendo e observando a cena: Monteiro, boca aberta, Luizão piscando sem parar, alimentando seu tique nervoso, Romão, com uma das mãos segurando o chapéu, com a outra coçando atrás da orelha esquerda e o Nicola roendo as unhas, o que lhe era costumeiro. Juca parado com a navalha na mão e o Noca, o cliente da vez, acomodado na cadeira do barbeiro mostrava pelo espelho uma meia cara ensaboada e outra raspada.

Diante desse cenário, Batista concluiu seu relato.

- Pois é, levei a moça pra dentro da casa, dei um banho, umas roupas da finada, um café reforçado e de quebra passei o ferro nela.

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